terça-feira, 17 de maio de 2011

Releitura do Conto "A CARTOMANTE" de Machado de Assis



A CIGANA

    - Pare de rir, Fredy. Não é brincadeira,você não percebe que o que ela me disse é verdade?
   - Ora, Raquel, só você mesmo para acreditar na profecia de uma cigana. Até parece que você não conhece a história dos ciganos... São especialistas em enganar, trapacear e essa história de ler a mão, francamente Raquel, só rindo mesmo.
   - Tudo bem, mas e como você explica o fato de ela ler nas linhas da minha mão que eu encontrei recentemente um grande amor, que há duas pessoas em minha vida e...
    - Tá certo, tá certo, não vamos discutir. Quer acreditar, acredita. Pior cego é o que não quer ver.
    - Cega eu, ta legal! Saiba que estou com os olhos bem abertos, de olho em você. Sorte sua que a cigana me confirmou seu amor.
    Frederico e Raquel mantinham um relacionamento há meses, encontrando-se sempre em locais diferentes para evitar que Mickael desconfiasse do envolvimento dos dois.
    Mickael  e Frederico eram amigos de infância e juventude. Estudaram juntos até o final do ensino médio, quando Mickael  ingressou no curso de Engenharia na UFRGS e mudou-se para a capital. Frederico não deu seguimento aos estudos, ficou em sua cidade, arrumou um emprego de auxiliar administrativo em uma empresa da cidade e foi levando a vida.
    Sempre que Mickael  vinha aos feriados ou mesmo nas férias, os dois amigos se encontravam e faziam programas juntos. Aos poucos Mickael  foi diminuindo suas vindas, havia arrumado uma namorada que descrevia ao amigo como uma tremenda gata.
    Concluída a faculdade, Mickael  é contratado por uma empresa paulista, se casa com a namorada Raquel e fica um bom tempo sem voltar à cidade natal, já que seus pais não residem mais ali.
    Até que uma grande obra a ser construída na região traz Mickael como engenheiro-chefe de volta à cidade e ao convívio do amigo.
Raquel encontra dificuldades em se ambientar na cidade pequena, o marido sempre trabalhando e viajando muito. Frederico, tentando prestar um favor ao amigo, procura mostrar a cidade a Raquel, fazendo passeios e visitas para que ela se sinta menos solitária. Sabe que o amigo confia nele e tem sempre bem presente que o mesmo não admitiria traição. Não bastasse o convívio direto, passam a trocar idéias e opiniões através do MSN e do celular. 
    No aniversário de Frederico, Mickael  está na cidade e, acompanhado de Raquel, vai ao jantar de comemoração. Mickael  dá ao amigo uma camisa oficial do seu time e Raquel discretamente lhe alcança um guardanapo onde escreveu sua mensagem de aniversário. A camisa tão cobiçada passa despercebida e o simples pedaço de papel passa a ser o melhor presente que jamais recebera. O inevitável acontece, está perdidamente apaixonado pela esposa do amigo. A familiaridade e o convívio foram tornando-os íntimos e tanto Raquel quanto Frederico acabam por se envolver. Procuram tomar todos os cuidados para que Mickael  não desconfie de nada. Marcam seus encontros por mensagens no celular imediatamente deletadas após o recebimento. Vão para cidades vizinhas onde frequentam motéis, restaurantes, hotéis e cabanas.
    Certa manhã, ao abrir sua caixa de e-mail, uma mensagem escancara sua situação de amante, traidor da confiança de seu amigo.
    Frederico se afasta do convívio do casal para disfarçar e evitar falatórios. Mickael  continua confiando no amigo e chamando-o à casa quando não está em viagem. Ao que Frederico arranja desculpas para não comparecer, chega a inventar que “está ficando” com uma garota.
    Foi quando Raquel, em uma cidade vizinha, indo ao encontro do amante, cruza pela cigana que lê a sua mão e aponta um final feliz para o seu romance.
Sobre a acusação recebida por e-mail, Raquel não acredita que seja de Mickael :
    - Não, ele anda sempre tão atarefado e sabe que vou às cidades vizinhas para “consultas” a médicos e dentistas e passeios pelo comércio.
    Certamente ele imagine que a esposa sinta saudades dos shoppings e galerias que frequentava quando residia em São Paulo ou mesmo em Porto Alegre, precisando distrair-se em passeios pelas ruas mais movimentadas dessas pequenas cidades que agora visita.
    No entanto, para não dar margem ao azar, decidem manter-se afastados por um tempo. Ela continuaria com seus passeios, mas não mais se encontrariam.
    Antes de voltar para casa, Frederico compra um novo chip para seu celular a fim de que possa se comunicar com Raquel através de um número desconhecido para Mickael , caso precise. Então volta ao seu pensamento o ditado recém dito à Raquel. “O pior cego é o que não quer ver”. Seria Mickael  um cego que não quer ver? Será que seu amigo suspeita, mas não quer saber? Seria bom, poderiam muito bem continuar assim, os três. Talvez devesse voltar ao convívio do casal, pois era possível que Mickael  não quisesse saber de nada. E o e-mail provavelmente era de alguém com inveja dele. Afinal, cidade pequena é assim, adoram um babado. E se o circo pegar fogo, melhor.
    Dois ou três dias depois, Frederico recebe uma mensagem de Mickael  no celular:
    - Vem até aqui em casa agora. Preciso urgentemente falar com você.
    Era passado do meio-dia e ele estava iniciando seu almoço no restaurante.
   O que Mickael  poderia querer com ele àquela hora? Talvez não fosse cego, teria descoberto e estava prestes a tirar satisfação do amigo. Mickael  nunca mandara mensagem para ele, por que essa agora? Onde estaria Raquel? Pegou o telefone de número desconhecido e discou o número de Raquel, a ligação caiu na caixa de mensagens. O que estaria acontecendo? E se Mickael quisesse vingar a traição matando Raquel?
Frederico olhava as pessoas entrando no restaurante, parecia que todas sabiam da mensagem que recebera e cobravam uma atitude sua. Lê novamente a mensagem, agora imaginando-a dita pelo amigo. Sai deixando seu prato servido sobre a mesa. Ao se dirigir até seu carro, percebe em um banco da praça duas ciganas. Imediatamente lembra da consulta de Raquel e da profecia da cigana. Mas ele, não ele não era cego.
    Novamente a mensagem lhe vem à mente. E então:
    - Moço, posso ver sua sorte?
    - Ahn?!
    - A sorte senhor, posso ler sua sorte?
    Tomando a mão de Frederico e percorrendo-a com o dedo indicador a cigana lhe diz:
   - O senhor levou um susto! Está vendo esta linha partida aqui, é uma preocupação muito grande, alguém com inveja, querendo o seu mal, mas nada de ruim vai lhe acontecer. Vejo uma mulher muito bonita em sua vida, ela está lhe esperando. Também vejo muito sucesso...
    A cigana falava rápido e da mesma forma as preocupações foram sumindo rápido da cabeça de Frederico. Aliviado, ele retira o dinheiro que dispõe em sua carteira e alcança para a cigana, entrando no carro e dirigindo-se até a casa de Mickael .
    A empregada atende levando-o até a sala onde Mickael  o espera. Sobre uma mesa, uma grande pasta em couro, do tipo catálogo, com um bonito laço de fita em volta.
    - Mickael, o que houve?
    - Sente-se amigo, chamei você aqui porque tenho um presente para lhe dar.
    Pegando da pasta, Mickael  entrega-a ao amigo e pede que abra.
    Na pasta há notas e recibos de altos valores, Frederico estranha:
    - O que é isso?
   - Isso?! Isso é o que você me deve: Cirurgia de lipoaspiração R$ 8.000,00, implantação de silicone R$ 5.500,00, mega hair R$ 4.250,00, implante dentário R$ 6.185,00, massagista.., cosmetologista... esteticista..., enfim, veja você mesmo.
    - Pode deixar o cheque sobre a mesa. A pasta é sua. ... Ah, Fredy, por favor não esqueça de levar a Raquel com você. Mas cuidado, pois o pior cego é aquele que não quer ver.


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